segunda-feira, 21 de maio de 2012

“Tomado pela Razão”


Por Edson Moura

Quando cheguei em casa, sentei-me numa cadeira ao lado da cama. Sentia-me superior a todos os outros mortais, como se de repente, tivesse alcançado de mim mesmo a indulgência por já não ter dezoito anos de idade. Como se a juventude, de supetão, já não tivesse valor. “Meus filhos dependem de mim, dependem de minha existência!”, pensei com uma vaidade que amargava em minha boca.

Num momento de introspecção, vi e revi passagens de minha longa vida. Repeti para mim mesmo: “Dependem de mim!”. Senti-me sólido, como uma rocha de milhões de anos que sobrevivera até a ação dos mais impetuosos ventos. Achei-me até mesmo um pouco pesado. Depois, por instantes que pareceram uma eternidade, contemplei as paisagens que emergiam de meu subconsciente.

Era como se flutuasse, cheio de gritos mudos e de esperanças sem perspectivas, de brilhos sombrios, de figuras e de perfumes mortos, flutuava à margem do mundo, entre parênteses, inesquecível e definitivo, mais indestrutível do que um mineral, e nada, nada mesmo me podia impedir de ter sido algo ou alguém. Estava sofrendo uma metamorfose, talvez a última. Meu futuro coagulava como o sangue de um animal morto na estrada. Uma vida (pensei) é feita de um futuro projetado, como os corpos são feitos de os átomos e como a alma é cheia de um vácuo. Baixei um pouco a cabeça. Pensava na própria vida.

O futuro penetrara-me até à medula. Tudo em mim estava em suspenso. Os dias mais recuados da minha infância, o dia em que disse ser ateu, o dia em que disse: “Serei importante”, apareciam-me agora, como um futuro particular, como um minúsculo céu pessoal e bem desenhado em cima de mim, e esse futuro era eu, eu tal qual sou agora, cansado e amadurecido, talvez até um pouco apodrecido. 

Esses pensamentos tinham poder sobre mim agora, sem poder escolher em que pensar ou do que lembrar, minha mente castigava-me com remorsos esmagadores porque o meu presente, cético e negligente era agora o meu velho e aniquilado futuro dos tempos de meu passado. Era por esse futuro que eu tinha esperado mais de vinte anos? Era desse homem cansado, que uma criança dura exigira a realização de suas esperanças? Dependia desse coitado atual que os juramentos infantis permanecessem infantis para sempre? Ou seria este o sinal de que um destino de fato existe e não há nada que possamos fazer para fugir das engrenagens do tempo?

Meu passado sofria açoites sem trégua. Constantes retoques do presente. Cada dia vivido destruía um pouco mais os velhos sonhos de grandeza, e cada novo dia tinha novo futuro. As coisas não paravam de mudar, numa constante tão severa que dava calafrios olhar muito adiante, e ânsia ao tentar olhar para tudo. Com esse frenesi em minha mente, via tudo ao tempo em que não enxergava nada. De cena em cena, de imagem em imagem, de futuro em futuro minha vida deslizava rapidamente diante de meus olhos entreabertos, em direção a lugar nenhum. Olhando em direção ao nada. Pensei em Eunice. Estava jovem ainda, e a vida dela, como a minha, não fora senão uma espera. Existiu com certeza, num outono do passado, uma menina de cabelos ruivos, que jurara amar-me.

Ainda ontem, obscuro e vacilante, eu esperava encontrar o sentido do futuro, ainda ontem ela esperava viver comigo e ser amada um dia após o outro. Os momentos mais cheios, mais pesados, as noites de amor que lhe tinham parecido mais eternas, não passavam de esperas. Não havia tido que esperar. A morte desabaria sobre todas essas esperas algum dia, parando-as, aniquilando-as totalmente, se é que se pode aniquilar pela metade. Elas continuavam imóveis, mudas, sem objetivo, absurdas. Não tinha havido nada que esperar. Nunca ninguém saberia se eu teria afinal sido amada por Eunice. A pergunta não fazia sentido para mim agora. 

Eu estou morrendo, não há mais um gesto a fazer, nem uma carícia, nem uma prece, e prece não farei mesmo! Já nada há senão esperas de esperas, nada mais senão uma vida vazia, de cores confusas, e que se abatia sobre mim. “Se eu morresse hoje (pensei) ninguém saberia se estava realmente confuso ou se tinha ainda possibilidade de me salvar de mim mesmo”. Não saberiam se eu me sentia grande ou amado. Não saberiam absolutamente nada de mim, não deste Edson que sou agora. Não neste momento. Eles falariam de outro Edson, o Edson que muitos acreditam que conhecem.

De volta ao meu quarto, regressando de uma viagem estática, olhei novamente para a arma em minha mão. Que covarde que sou (pensei). Mesmo aniquilado pelo tempo, velho, pobre, fracassado e cansado, mesmo assim eu não ouso levar a cabo minha vontade. Pela centésima vez em cem dias eu desisto de morrer. Mas deve ser assim mesmo. Sou racional, sou um animal consciente, e é isso que a consciência faz do homem... Um covarde. Um covarde de 70 anos.

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