terça-feira, 15 de maio de 2012

Neurônios-espelho. Uma grande descoberta cientifica



Por Noreda Somu Tossan

Por que sorrimos quando vemos alguém sorrir? Ou por que ficamos com olhos marejados quando a protagonista de um filme chora? Já reparou que nos retesamos quando vemos alguém com dor ou sentimos uma vontade incontrolável de bocejar quando alguém boceja? Afinal, o que nos leva a agir de acordo com o que as outras pessoas fazem? 

Isso acontece porque, quando vemos alguém fazendo algo, automaticamente simulamos a ação no cérebro, é como se nós mesmos estivéssemos realizando aquele gesto. Isso quer dizer que o cérebro funciona como um “simulador de ação”: ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação que observamos. Essa capacidade se deve aos “neurônios-espelho”, distribuídos por partes essenciais do cérebro  (o córtex pré-motor e os centros para linguagem, empatia e dor). Quando observamos alguém realizar essa ação, esses neurônios disparam (daí o nome “espelho”). Por isso, essas células cerebrais são essenciais no aprendizado de atitudes e ações, como conversar, caminhar ou dançar. Eles permitem que as pessoas executem atividades sem necessariamente pensar nelas, apenas acessando o seu banco de memória.


O cérebro funciona como um “simulador de ação”: ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação que observamos.

Os neurônios-espelho foram descobertos por acaso pela equipe do neurocientista Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma, na Itália. O grupo colocou eletrodos na cabeça de um macaco, um aparato que permitia acompanhar a atividade dos neurônios na região do cérebro responsável pelos movimentos através de um monitor. Cada vez que o macaco cumpria uma tarefa, como apanhar uvas-passa com os dedos, neurônios no córtex pré-motor, nos lobos frontais, disparavam. Quando um aluno entrou no laboratório e levou um sorvete à boca, o monitor apitou (foi uma surpresa para os cientistas, porque o macaco estava imóvel). O mais intrigante é que sempre que o macaco assistia o experimentador ou outro macaco repetir essa cena com outros alimentos os neurônios disparavam.

Mais tarde, exames de neuroimagem mostraram que nós temos neurônios-espelho muito mais sofisticados e flexíveis que os dos macacos. “Nosso conhecimento do motor e a nossa capacidade de ‘espelhamento’ nos permitem compartilhar uma esfera comum de ação com os outros, dentro do qual cada ato motor ou cadeia de atos motores, sejam eles nossos ou dos demais, são imediatamente detectados e intencionalmente compreendidos antes e independentemente de qualquer mentalização”, observa Rizzolati.

A equipe do neurocientista Giovanni Buccino, da Universidade de Parma, usou Ressonância Magnética Funcional (RMF) para medir a atividade cerebral de voluntários enquanto eles assistiam a um vídeo que mostrava sequências de movimentos de boca, mãos e pés. Dependendo da parte do corpo que aparecia na tela, o córtex motor dos observadores se ativava com maior intensidade na região que correspondia à parte do corpo em questão, ainda que eles se mantivessem absolutamente imóveis. Ou seja, o cérebro associa a visão de movimentos alheios ao planejamento de seus próprios movimentos.

Outras experiências mostram que os neurônios-espelho dos macacos ainda são ativados diante de um estímulo indireto, que é associado a uma tarefa. Por exemplo, o som de uma casca de amendoim se quebrando. Isso se deve a neurônios-espelho, audiovisuais que seriam importantes na comunicação gestual desses animais. Nos seres humanos isso também é possível: os neurônios são ativados quando a pessoa imita, complementa uma ação ou quando apenas imagina ela própria realizando essas mesmas ações.

“Os neurônios-espelho mudaram o modo como vemos o cérebro e a nós mesmos, e têm sido considerado um dos achados mais importantes sobre a evolução do cérebro humano”, diz o neurocientista Sérgio de Machado, pesquisador e pós-doutorando do Laboratório de Pânico da UFRJ. “Se a tarefa exige compreensão da ação observada, então as áreas motoras que codificam a ação são ativadas. Isso indica que há uma conexão no sistema nervoso entre percepção e ação, e que a percepção seria uma simulação interna da ação”, completa.

Questão de empatia

Alguns pesquisadores especulam quanto à verdadeira função desses neurônios. Podemos dizer que o observador estaria simulando mentalmente a ação ou estaria se preparando para agir? O pesquisador húngaro Gergely Csibra, do Departamento de Psicologia do Birkbeck College, no Reino Unido, sugere que o papel dos neurônios-espelho talvez não seja exatamente o de espelhar ou simular a ação, mas de antecipar as possíveis respostas a essa ação. O que nos leva a acreditar que o cérebro é um grande gerador de hipóteses que antecipa as consequências da ação e que permite a tomada de decisão.

Devido a essa capacidade, podemos imaginar aquilo que se passa na mente do outro, colocando-nos no lugar da outra pessoa, compreendendo suas ações. Por exemplo: se vemos uma pessoa chorar por algum motivo, os neurônios-espelho nos permitem lembrar das situações em que choramos e simular a aflição dela. Sentimos empatia por ela, sentimos o que a pessoa está sentindo. “A capacidade de simular a perspectiva do outro estaria na base de nossa compreensão das emoções do outro, de nossos sentimentos empáticos”, diz Machado.

Isso faz toda a diferença, porque é graças a essa capacidade que podemos estabelecer relações sociais. “A predição das emoções do outro é fundamental para o comportamento social. A pessoa não cometerá um ato que é doloroso ou prejudicial ao demais. Isso se deve à empatia, que é a capacidade de interpretar as emoções alheias. O ser humano é dotado da teoria da mente, isto é, a capacidade de se colocar mentalmente no lugar de outra pessoa. Ela é a base do julgamento de intenções”, explica o neurocientista Renato Sabbatini, professor da Faculdade de Medicina da Unicamp.

A empatia seria determinada biologicamente desde o nascimento. “É preciso existir uma maquinaria inata, que nos permite certas capacidades, porque nem tudo em nosso comportamento é aprendido”, observa Sabattini. Ele lembra que os neurônios-espelho ainda são um mecanismo-chave para a aprendizagem. Um exemplo disso é que, desde bebês, somos capazes de imitar expressões faciais dos adultos, instintivamente reproduzimos caras e bocas. Isso acontece porque os neurônios-espelho começam a funcionar logo na primeira infância. Podemos, por exemplo, ampliar as nossas chances de sucesso em alguma tarefa, apreendendo com os “experts”.

A empatia envolve regiões do cérebro que existem há mais de 100 milhões de anos e funciona como a “cola” que mantém as sociedades unidas, segundo o primatólogo holandês Frans de Wall, em seu livro “A Era da Empatia”. Como Wall, os cientistas partem do princípio de que os nossos cérebros são produto da seleção natural e que as pressões do ambiente social determinaram quais características deveriam ser mantidas para as gerações futuras (e uma dessas marcas seriam os neurônios-espelho). “A maior parte dos gestos motores, como amarrar os sapatos, é aprendido por imitação, ou seja, tentativa e erro. Isso prevalece no reino animal, principalmente nos vertebrados”, diz Sabbatini.

“Os estudos desses neurônios nos oferecem uma grande contribuição na compreensão da emoção: hoje sabemos que temos um sistema que partilha percepção e ação. O espelhamento permite o compartilhamento de emoções, presente no estado de empatia. Isso nos possibilita formular teorias mais compatíveis com os achados biológicos”, diz a psicóloga Cláudia Passos, que se dedica ao estudo de Ética e Biotecnologias em seu pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela UFRJ.

Em “O Cérebro Empático” – Como, Quando e Por que?, a neurocientista alemã Tânia Singer e a filosofa francesa Frederique de Vignemont propõem quatro condições para que a empatia aconteça:

1-) Alguém está num estado afetivo, como medo, raiva ou tristeza, por exemplo. 

2-) Esse estado é isomórfico ao estado afetivo da outra pessoa.

3-) Esse estado é produzido pela observação ou imaginação do estado afetivo de outra pessoa.

4-) A pessoa sabe que a outra pessoa é fonte do seu próprio estado afetivo.

“Os achados de imagem cerebral permitem que sejam identificadas áreas de ‘espelhamento’ do cérebro que são ativadas no estado de empatia, mas não se sabe exatamente como essas áreas cerebrais atuam nos estados da empatia descritos por essas pesquisadoras. Pode ser que um dia possamos ter uma precisão maior do que acontece no cérebro empático”, prevê Cláudia.

Moralidade

Estudos sugerem que as pessoas ajudam mais as outras quando têm empatia por elas, o que explica porque a empatia geralmente é associada ao senso moral, justiça, altruísmo e cooperação. As pesquisas com neurônios-espelho despontam como aliado no debate quanto à natureza de decisões morais. Elas reforçam a tese de que os comportamentos morais têm um traço afetivo porque envolvem a capacidade do indivíduo de sentir as emoções do outro, e dependem do sistema de recompensa (circuitos do cérebro ligados à sensação do prazer).

“Alguns teóricos defendem que as decisões morais são de natureza cognitiva e envolvem um pensamento moral. Mas os experimentos com neurônios-espelho fortalecem a ideia de que as emoções estão na base do sentimento moral. Isso significa dizer que não aprendemos apenas racionalmente, mas também somos educados sentimentalmente”, diz a pesquisadora.

Apesar do entusiasmo da comunidade científica, a filosofia ainda despreza as descobertas das ciências cognitivas e a psicologia moral. “A filosofia sempre operou com distinção entre fato e valor. Esses achados empíricos sobre neurônios-espelho são vistos com desconfiança, embora haja alguns naturalistas que tenham contribuído no diálogo com as ciências”, completa.

A “corrida” em busca desses neurônios em diferentes áreas do cérebro ajudou a lançar luz sobre uma questão que há muito intriga os cientistas: o autismo. Um estudo com ressonância magnética funcional mostra uma falha do mecanismo de espelho nessas crianças. Ao contrário do que ocorre em crianças normais, as crianças autistas não imitam gestos no espelho quando se veem face a face. “Crianças com autismo têm grande dificuldade para, se expressar, compreender sentimentos como medo, alegria ou tristeza, não percebem o significado emocional das ações alheias. O autista tem dificuldade de interagir e se assusta com expressões faciais e ruídos. Tudo indica que há uma falha no sistema de neurônios-espelho”, diz Machado.

 Pesquisadores observaram crianças autistas e crianças normais enquanto elas assistiam ao experimentador agarrar um pedaço de comida para comer ou agarrar um pedaço de papel para colocar em um recipiente. A atividade elétrica do músculo envolvido na abertura da boca foi gravada. Os resultados mostraram a ativação dos neurônios correspondentes ao músculo da boca ao ver a comida em crianças normais, mas isso não aconteceu com as crianças autistas. Em outras palavras, enquanto a observação de uma ação feita por outra pessoa interferiu no sistema motor de uma criança normal que observava o movimento, o mesmo não aconteceu não no caso de uma criança autista.

“O autismo está associado a uma deficiência na habilidade de leitura da mente, na capacidade de interpretar as emoções do outro. É verdade que algumas crianças se mostram extremamente eficientes em outras habilidades cognitivas não sociais, como é o caso dos portadores de Síndrome de Asperger. Ainda assim, relatos de pessoas com esta síndrome atestam pouca ou nenhuma capacidade de introspecção”, diz Sabbatini. Pessoas com síndrome de Asperger têm os mesmos traços dos autistas, mas com uma diferença: elas possuem grande capacidade cognitiva, o QI pode variar de normal até níveis muito mais altos.

Distúrbios neurológicos

Além de compreender melhor nosso comportamento, os estudos sobre neurônios-espelho podem ajudar na solução de questões de ordem prática, como a recuperação de pacientes com perda da função motora. Em 1992, o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, diretor do Centro do Cérebro e da Cognição da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, criou uma técnica que usa um espelho para tratamento de dor fantasma (pessoas que perderam um braço, por exemplo, sentem dores nesse membro como se ele ainda estivesse lá). A técnica permite que uma rede de neurônios responsáveis pelo controle de uma mão possa ser usada nos movimentos de outra mão numa determinada tarefa. A ideia é reeducar o cérebro com uma simples tarefa, em que a pessoa realiza movimentos com o braço saudável, vendo no espelho como se fosse o braço lesionado. (muito bem ilustrado num episódio de Dr. House).

“Assim é possível enganar o cérebro, fazendo com que ele imite os movimentos do braço lesionado através do reflexo do braço não lesionado no espelho”, diz Machado. A técnica também tem sido empregada para recuperação do movimento em pessoas que sofreram AVC (derrame). Alguns pacientes são mais beneficiados que outros, dependendo do local da lesão e da duração do déficit após o AVC. Estimativas atestam que cerca de um décimo da população mundial será vítima de déficit motor por causa do AVC.

Às vezes, a perda do movimento está ligada também à alteração de visão. Isso acontece porque, nas fases iniciais do derrame, o cérebro apresenta um edema, deixando também temporariamente alguns nervos atordoados e “desligados” que os especialistas chamam de “paralisia aprendida”. “Caso exista ainda neurônios-espelho sobreviventes, a terapia espelho poderia revivê-los”, diz Machado.

Durante a terapia, essas células tanto podem responder a gestos já praticados quanto a não aprendidos. O que significa que a capacidade desses neurônios de reagir à observação de uma tarefa não depende obrigatoriamente da nossa memória. A tendência é imitar, inconscientemente, aquilo que observamos, ouvimos ou percebemos. “Tanto existe reação como aprendizagem durante o processo de reabilitação, há uma dupla função”, diz Machado. Mas ele ressalva: “Se há uma lesão nesse circuito, isso vai levar a um tipo de interferência, talvez não haja integração das informações”.

A antiga visão de que o cérebro é dividido em módulos autônomos com funções específicas e que interagem pouco uns com os outros vem do século passado e a neurologia ainda tem se baseado nela. Uma lesão em um dos módulos traria um problema neurológico irreversível. “Os achados, no entanto, sugerem que é necessário repensar a visão de que o cérebro trabalha de forma seriada e hierárquica com seus módulos e substituí-la por uma nova visão mais dinâmica. O cérebro trabalha de forma integrada em paralelo e não de forma seriada. Existe atividade de várias áreas do cérebro ao mesmo tempo”, diz Machado. Segundo ele, ao invés de pensar os módulos cerebrais como inflexíveis, devemos pensar em um equilíbrio dinâmico como conexões sendo constantemente formadas e reformadas em respostas a mudanças ambientais.

Fonte: (Revista Psique Ciência e Vida edição 76, págs. 24 à 31, pela jornalista Roberta de Medeiros). Sou assinante da Revista e recomendo à todos)

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