domingo, 19 de dezembro de 2010

O fanatismo (segundo Voltaire)


Por Noreda Somu Tossan

Fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta. Mas, aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. 

João Diaz, retirado em Nuremberg, firmemente convencido de que o papa é o Anticristo do Apocalipse e que tem o signo da besta, não era mais que um entusiasta.

Já Bartolomeu Diaz, que partiu de Roma para ir assassinar santamente o seu irmão e que efetivamente o matou pelo amor a Deus, foi um dos mais abomináveis fanáticos que em todos os tempos pôde produzir a superstição.

Polieuto, que vai ao templo num dia de solenidade derrubar a destruir as estátuas e os ornamentos, é um fanático menos horrível do que Diaz, mas não menos tolo. Os assassinos do duque Francisco de Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, do rei Henrique III, do rei Henrique IV e de tantos outros foram energúmenos enfermos da mesma raiva de Diaz.

O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu, seus concidadãos que não iam à missa.      
Há também os fanáticos de sangue frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles. E esses juízes são tão mais culpados...tão mais merecedores da execração do gênero humano, quanto, um homem tomado de um acesso de furor como os assassinos que não podem ouvir a vós da razão.

Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer, se acaloravam cada vez mais, seus olhos encarniçavam-se, seus membros tremiam, o furor desfigurava seus rostos e teriam matado quem quer que os houvesse contrariado.

 Não há outro remédio contra essa doença epidêmica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra a peste das “almas”. A religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se em veneno nos cérebros infeccionados. Esses miseráveis têm incessantemente presente no “espírito” o exemplo de Aode, que assassina o rei Eglão...de Judite, que corta a cabeça de Holoferne quando deitada com ele... de Samuel, que corta em pedaços o rei Agague. Eles não vêem que esses exemplos respeitáveis para a antigüidade são abomináveis na época atual; eles haurem seus furores da mesma religião que os condena.

As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva. Essa gente está persuadida de que o “espírito santo” que os penetra está acima das leis e que o seu entusiasmo é a única lei a que devem obedecer.

O que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, conseqüentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar?

De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos: assemelham-se a esse Velho da Montanha que fazia – segundo se diz – imbecis gozarem as alegrias do paraíso e que lhes prometia uma eternidade desses prazeres que lhes havia feito provar com a condição de assassinarem todos aqueles que ele lhes apontasse.

Só houve uma religião no mundo que não foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China. As seitas dos filósofos estavam não somente isentas dessa peste como constituíam o remédio para ela: pois o efeito da filosofia é tornar a alma tranqüila e o fanatismo é incompatível com a tranqüilidade. Se a nossa “santa” religião tem sido freqüentemente corrompida por esse furor infernal, é à loucura humana que se deve culpar.

Edson Moura (extraído do Dicionário Filosófico de Voltaire)

4 comentários:

  1. O mais interessante é notar que o pensamento lúcido e permeado com tolerância ao exercício do livre pensamento como o de Voltaire, encontra poucos ecos na nossa sociedade dita "evoluída".

    Parabéns pelos textos do Blog e pode contar com um amigo.

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  2. Dhiogo, realmente você está coberto de razão...e como é bom usar a razão não é? rss

    Pois a sociedade que se diz evoluída, vem cedendo cada vez mais espaço ao fanatismo que impregnou a religião.

    Quando lí Voltaire, achei que estaria lendo um ateu ferrenho, pois foi assim que John Wesley o descreveu. Mas me enganei. A tolerância era uma marca registrada deste filósofo de lucidez ímpar.

    Valeu pela visita.

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  3. Na verdade Voltaire era um deísta. É dele aquela frase do "relógio sem relojoeiro". No seu livro "O ateu e o sábio" ele usa de argumentos teleológicos.

    Creio que se vivesse em seu tempo, sem os conhecimentos científicos modernos, teria sido um deísta também.

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  4. De fato Diogo, Voltaire era deísta, e certamente eu também o seria se vivesse àquela época. Mas acho que você concordará comigo se eu disser que:

    "Se Voltaire, com sua mentalidade tão esclarecida, vivesse nos dias de hoje, sria um ateu mais "radical" que Diderot.

    Abraços amigo!

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